Sala de convívio
15 março 2022

Um ódio incompreendido

Tempo de leitura: 3 min
Estava eu nos meus 13 anos, contente e iludido pelas minhas boas notas na matemática, quando me apercebi que havia um número que me odiava: o 540.
Pedro Neves
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Crónicas verdes de um adolescente

 

Num dia de trabalho na vacaria, enquanto passava o rodo – utensílio de limpeza semelhante a uma vassoura constituído todo de madeira e borracha no lugar dos pelos da vassoura – e empurrava os excrementos para a fossa – poço fundo usado para armazenar os excrementos para mais tarde utilizar para fertilizar os campos –, reparei que havia vacas novas… Na verdade, só reparei numa… Ou melhor, ela reparou em mim!

Eu vi nela uma simples vaca, de estatura normal, orelhas normais, focinho normal, olhos normais, patas normais, preto e branco normal, um corpo e ser vivo normal.

Ela viu em mim um alvo para ser eliminado.

Começou por me dirigir umas cabeçadas violentas, das quais escapei por pouco. Mais tarde, começou uma perseguição tipo gato e rato. Não sei até hoje qual era o motivo… Seria eu rato? Talvez… pelo meu grande amor a queijo. A perseguição acabou quando saltei para cima de uma cama de vaca. Então, reparei que o número dela era 540. Só nessa altura é que comecei a ficar realmente preocupado com a situação. Mas despistei-a e fugi para o exterior.

Uns minutos mais tarde, enquanto caminhava perto da manjedoura (tijoleira branca onde fica a silagem das vacas para elas se servirem) a refletir no ocorrido, reparei que a minha nova amiga 540, que se encontrava um pouco à frente na manjedoura, tinha os seus dois olhos bem apontados em mim. Quando me aproximei dela para saciar a minha curiosidade de perceber o que ela faria desta vez, ela impulsionou o corpo para a frente e tentou deitar a baixo a barreira metálica que nos separava.

Nunca tinha ocorrido nada semelhante comigo. Consultei os mais experientes na minha casa. Disseram-me que de vez em quando há algumas vacas agressivas, mas não com um ódio tão profundo.

Senti que o meu trabalho estava mais emocionante. Por isso, decidi aventurar-me mais uma vez, mesmo contrariando o conselho que me deram de não ir de novo para o meio das vacas. O trabalho tinha perdido a monotonia. Aquela aventura tinha-me feito lembrar os meus tempos de primária, a brincar aos polícias e aos ladrões.

Mesmo no final da ronda de limpeza das camas das vacas, já mais relaxado e ao mesmo tempo aborrecido por não ter visto a vaca 540, eis que olho para trás e sou imediatamente empurrado para a frente. Segurei-me a uma barra de metal, para não me sujar todo, e fujo quase a tropeçar nos meus próprios pés até à saída.

Caminho até ao escritório da vacaria, desta vez sentindo algum pânico, ainda vigiado pela 540. Entro e reclamo com a minha família do que aconteceu. Pedi para ir ver as câmaras de vigilância e analisar o sucedido. Enquanto os olhos do meu pai se focavam nas filmagens do computador, o meu semblante mudava de analisador para surpreendido, para o medo e, por fim, para pensativo.

Durante uma semana fiquei impedido de ir fazer a cama das vacas. O meu pai teve de substituir-me. Não era tão perigoso para ele, quanto para mim, talvez porque tem mais respeito pelas vacas. Porém, mesmo assim, a 540 continuou a fazer algumas birras lá dentro e a portar-se mal.

Passado alguns dias, a 540 parou de se portar mal.

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EDIÇÃO
Março 2024 - nº 626
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