Opinião
26 março 2019

Construir a fraternidade

Tempo de leitura: 5 min
Estamos chamados a «redescobrir os valores da paz, justiça, bondade, beleza, fraternidade humana e coexistência».
Bernardino Frutuoso
Director
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O Papa Francisco tornou-se o primeiro chefe da Igreja Católica a pisar o solo da península arábica, berço do Islão. Numa histórica e simbólica viagem, esteve nos Emirados Árabes Unidos e junto com o grande imã de al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, assinaram a Declaração de Abu Dhabi. A histórica «declaração de fraternidade» condena o terrorismo e a intolerância e tem como objectivo «encontrar uma paz universal de que todos possam desfrutar nesta vida», crentes e não-crentes. «Pedimos a todos que deixem de usar as religiões para incitar ao ódio, à violência, ao extremismo e ao fanatismo cego, e que se abstenham de usar o nome de Deus para justificar actos de assassínio, exílio, terrorismo e opressão», refere o documento ao condenar a violência em nome da religião, considerando-a ilegítima e injustificável. «Al-Azhar al-Sharif e os muçulmanos do Oriente e do Ocidente, juntamente com a Igreja Católica e os católicos do Oriente e do Ocidente, declaram a adopção de uma cultura de diálogo como o caminho; a cooperação mútua como código de conduta; a compreensão recíproca como método e padrão», acrescentam os signatários.

O papa e o grande imã esperam que a posição conjunta una em seu redor intelectuais, filósofos, figuras religiosas, artistas, profissionais dos media e homens e mulheres de cultura para «redescobrir os valores da paz, justiça, bondade, beleza, fraternidade humana e coexistência».

Como confidenciou o Santo Padre, São Francisco de Assis foi o grande inspirador deste gesto papal de aproximação ao mundo islâmico. Segundo refere Leonardo Boff no fascinante livro São Francisco de Assis. Ternura e Vigor (1999, Vozes), o pobre de Assis, impulsionado pelo zelo missionário, com o intuito de dialogar com os muçulmanos e até sofrer o martírio por Cristo, foi, no Outono de 1219, ao acampamento do sultão do Egipto, Melek-el-Kamel (1218-1238). Ainda que este seja um relato lendário e hagiográfico, expressa uma profética cruzada de paz e de amizade que corresponde, certamente, ao projecto de Francisco, que nesse mesmo ano tinha incluído na primeira Regra a possibilidade de «ir entre os sarracenos», não com a força das armas, senão com o poder do Evangelho e do testemunho.

Francisco de Assis, o protótipo ocidental da razão cordial e emocional segundo o filósofo Max Scheler, é também o paradigma da fraternidade universal e do diálogo inter-religioso. Por isso, oitocentos anos depois, o Papa Francisco cruzou o mesmo deserto que o santo de Assis e Cristianismo e Islão voltaram a abraçar-se. Na Conferência Inter-Religiosa sobre Fraternidade Humana na Grande Mesquita de Abu Dhabi estiveram, lado a lado, dirigentes cristãos, islâmicos, hindus, budistas e judeus. Francisco falou na necessidade de construir a paz e condenou as guerras. Recusou a lógica da corrida ao armamento, da edificação de muros, do silenciamento e da segregação a que muitos grupos humanos e minorias religiosas são condenados.

Como afirma o teólogo Joseph Ratzinger no brilhante ensaio La fraternidad cristiana (1962, Taurus), a fé em Jesus Cristo é portadora do «verdadeiro universalismo» e, por isso, «a comunidade cristã não está contra o todo, e sim para o todo». Conscientes de que a fraternidade unifica e a Igreja está ao serviço da humanidade, os crentes estão chamados a ser actores principais na construção de itinerários que favoreçam o diálogo, o respeito da diversidade, a justiça, a tolerância, o perdão e a paz.

 

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Editorial
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