Opinião
18 outubro 2022

De que modo mudas o mundo?

Tempo de leitura: 5 min
O modo como agimos pode iniciar um efeito em cadeia cujo desfecho imprevisível pode nunca ser-nos comunicado, mas não importa. Pois, o modo como fazemos cada coisa é o modo como fazemos qualquer coisa.
Miguel Oliveira Panão
Professor universitário
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(© 123R)

 

O que assistimos hoje com a guerra na Ucrânia fez-me pensar na série da Amazon Prime, “Os Anéis do Poder” que conta a história de fantasia vinda da mente de J.R.R. Tolkien sobre a criação dos anéis do poder e a ascensão do Senhor das Trevas Sauron ao poder. A mestria da visão de Tolkien é a de nos ajudar a perceber que não existem bons e maus no sentido binário do termo. Também Sauron, o Senhor das Trevas, deseja curar a Terra Média e trazer-lhe a paz. A diferença está no modo como o faz.

À nossa volta somos diariamente confrontados com coisas que não nos parecem bem. E quando discutimos sobre algo com alguém, a intenção de base é a de chegar à paz e curar a terra dos corações. Porém, uns pensam que só com poder e força podemos fazê-lo, caso contrário, os outros não aceitarão ou compreenderão a paz do modo como a entendemos. Outros, porém, pensam que a paz que cura faz-se na aventura que partilhamos juntos, sem saber muitas vezes por onde caminhar e como, seguindo apenas um aroma.

A pandemia e, agora, a guerra na Ucrânia, mostraram como a Humanidade está permanentemente numa aventura e que a paz assemelha-se, mais do que desejaríamos, a pausas entre conflitos. Se entre nós sentimos dificuldade em dialogar sobre as coisas difíceis, as consequências dessa mesma dificuldade ao nível político global torna as coisas difíceis ainda maiores. Mas, se soubéssemos os meandros de todas as histórias que conduziram à paz, a intuição diz-me que foram inúmeros os pequenos passos dados por pessoas simples que fizeram escolhas determinantes pelo efeito em cadeia que geraram.

Uma das mais recentes e mediáticas é a história de Greta Thunberg que, com 15 anos apenas, decidiu sentar-se em frente ao parlamento sueco em 2018 com um cartaz a dizer “Greve à escola pelo clima”, gerando uma onda de crescente sensibilidade ambiental entre jovens e adultos, sem prever que o seu pequeno gesto pudesse ter tamanho impacto.

Existem outros exemplos, mas se cada um sondar a sua história, certamente encontrará aquela pequena palavra que lhe disseram, ou disse; aquele gesto que lhe fizeram, ou fez; aquela presença que lhe proporcionaram, ou proporcionou; e que se tornou um ponto de viragem na sua história ou na história de alguém. Recordo-me de em 2019, após um período de incerteza relativa à ansiedade que sentia no corpo, e de inúmeros exames médicos que nada acusavam, ter recebido uma palavra da minha esposa que se tornou um ponto de viragem para mim.

A dimensão digital da nossa comunicação entra na nossa vida porque a consideramos útil. Porém, o isolamento digital que resulta dessa comunicação abre em nós a possibilidade de compreendermos melhor o valor que a dimensão física e relacional da vida tem ao comunicarmos entre nós. A guerra que vemos nos notíciários é uma expressão das guerras interiores que vivemos todos os dias, dentro de nós e que ninguém vê. Ciclos viciosos dos quais é muito difícil sair. No silêncio gritamos por ajuda, mas as pessoas à nossa volta estão tão entretidas a olhar para o seu ecrã e a partilhar fotos que nos tornamos invisíveis para elas. A inversão da espiral recessiva do mundo digitalizado talvez comece por sermos melhores a prestar atenção ao modo como agimos, pensamos, falamos e sentimos, sem esquecer que todo aquele que está ao nosso lado faz, pensa, fala e sente se lhe dermos espaço para isso.

Parece uma utopia querer resolver os problemas do mundo a partir do quotidiano de cada um de nós. Até podem dar-nos esperança de que por via da teoria do caos, um gesto de amor que fazemos será o suficiente para gerar um efeito em cadeia que muda o mundo sem termos essa pretensão. Mas nunca saberemos. E, talvez, signifique ser necessário aceitar que nunca saberemos o resultado dos nossos pequenos gestos. Porém, não saber não nos impede de não fazer.

O modo como trilhamos os nossos caminhos enche-se de incerteza, ainda que estejamos atentos aos sinais. O modo como escutamos pode abrir-nos a uma compreensão nova da realidade. O modo como falamos pode imprimir uma dinâmica nova à realidade que nos rodeia. O modo como agimos pode iniciar um efeito em cadeia cujo desfecho imprevisível pode nunca ser-nos comunicado, mas não importa. Pois, o modo como fazemos cada coisa é o modo como fazemos qualquer coisa. E se tudo o que fizermos for por amor, como diz São João da Cruz, «onde não existe amor, coloca amor e amor encontrarás».

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