Opinião
08 junho 2023

Meias-verdades

Tempo de leitura: 4 min
O desafio que se nos coloca a nós discípulos-missionários é o de integrar as três dimensões – as ideias, os afectos e as acções – na formulação do anúncio e da identidade cristã.
P. Manuel Augusto Lopes Ferreira
Missionário comboniano
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(© cathopic.com/José Quiroz)

 

Desde a primeira geração dos discípulos-missionários que a missão vive o desafio de confiar à Palavra humana um anúncio de natureza divina. Na experiência do encontro com o Senhor ressuscitado e à luz do dom do Espírito, os apóstolos tiveram uma nova compreensão da pessoa e do ensinamento de Jesus; e assumiram a sua própria identidade de comunidade portadora de um anúncio a levar a todas as pessoas e povos. A leitura dos Actos dos Apóstolos, no tempo pascal, familiarizou-nos com essas fórmulas de anúncio que sobreviveram nas primeiras comunidades em forma oral, transmitindo-se graças às técnicas mnemónicas que as pessoas desenvolveram, ao não disporem de registo de voz ou de escrita.

As línguas que inicialmente veiculam o ensinamento de Jesus e as fórmulas do anúncio cristão são substituídas (sobretudo a seguir ao Vaticano II) pelas línguas dos povos que acolhem a fé. A missão cristã guia-se pelo princípio da inculturação e da transmissão da fé em termos culturalmente significativos. Além disso, crescemos na consciência de que há uma jerarquia de verdades; isto é, que há que considerá-las como um todo, devidamente ordenado. Enquanto as centrais são enunciadas desde o primeiro anúncio, às outras pode-se aceder num segundo tempo e em modo progressivo.

No nosso tempo e cultura, os discípulos-missionários de Jesus enfrentam agora uma nova dificuldade: a de serem pressionados a conformarem-se às afirmações cultural e politicamente correctas. Mas a justa preocupação por inculturar a fé não pode ceder a esta pressão, nem cair na formulação de meias-verdades que comprometem a identidade do anúncio cristão, confundindo o respeito às pessoas (sempre devido) com a profissão da fé (a fazer-se na integridade). Dou um exemplo. Um bispo dá uma entrevista em que afirma que Jesus não discriminou pessoas nem rejeitou ninguém, referindo esta atitude à situação das pessoas alvo de (eventual) discriminação. Ora, se é verdade que Jesus mostra uma abertura de atitude para com todos, para com as pessoas excluídas na sociedade religiosa do seu tempo, também é verdade que o seu anúncio da soberania de Deus inclui um apelo à metanoia, à transformação e conversão pessoais, feito a todos e que não se pode silenciar (para os estudiosos, este anúncio e apelo são o dado mais indiscutível do movimento de Jesus).

Na recente assembleia sinodal continental, uma reconhecida testemunha do nosso tempo (o P.e Tomáš Halík) fez-nos entender onde nos encontramos, pelo que se refere à afirmação da identidade cristã: até ao Concílio Vaticano II, pusemos o acento na ortodoxia, isto é, na recta doutrina; no pós-concílio, passámos a pôr o acento na ortopraxia, isto é, na recta acção, para transformar a sociedade segundo os valores do Evangelho; neste século xxi, estamos a pôr o acento na ortopatia, isto é, nos rectos sentimentos e afectos em relação a pessoas, animais e Natureza.

Isto explica que o Papa Francisco insista na proximidade, nas carícias de Deus para com todas as suas criaturas. O desafio que se nos coloca a nós discípulos-missionários é o de integrar as três dimensões – as ideias, os afectos e as acções – na formulação do anúncio e da identidade cristã, evitando as meias-verdades, que não servem a fecundidade espiritual do anúncio de que somos devedores às pessoas e aos povos.

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