Sala de convívio
02 abril 2020

Hospital ortográfico

Tempo de leitura: 4 min
Todos os dias se inventam novas estratégias para que os miúdos gostem de ler e escrevam sem erros. E os professores inventam cada dia maneiras mais engenhosas de aí chegar.
Alice Vieira
Escritora
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É claro que isto anda tudo ligado: quem não lê – ou lê pouco – tem pouco contacto com as palavras e por isso é natural que não as saiba escrever.

(Quando falo nesta questão, rio-me sempre, porque me lembro do meu filho, muito pequenino, ainda a começar a aprender as primeiras letras, que um dia, sentado no chão ao lado do pai, com uma folha de papel e um marcador, fazendo de conta que escrevia, lhe perguntou:

– Pai... «Homem» é com h?

– É sim, meu filho.

Longa pausa de reflexão. Mais um risco no papel.

E ele de novo:

– Pai…

– Sim, filho...

– Com um ou com dois?

– Depende dos homens, meu filho, depende dos homens...)

Adiante...

Mas agora passa na internet, já se tornou viral, um documentário sobre uma professora de Valladolid, em Espanha, que “fundou” um “Hospital Ortográfico”.

Verónica Duque, professora das classes da primária do Colégio Maria Teresa Iñigo de Toro, é daquelas professoras que, quando as coisas não estão bem, não se lamenta, não se queixa, nem acusa os miúdos de não saberem nada: arregaça as mangas e trata de consertar o que está mal.

Aqui há uns tempos, quando os seus alunos, por mais esforços que ela fizesse, não se entendiam com os órgãos do corpo humano, que estudavam de cor, mandou vir um disfarce da internet onde se recriava o corpo em todos os seus órgãos e músculos, vestiu-o e assim os miúdos puderam ver, ao vivo e a cores, o que nunca tinham imaginado que pudesse existir dentro de um corpo... (Aí parece que as autoridades do colégio não gostaram muito – mas ela ralada.)

Agora veio a ideia do Hospital Ortográfico.

Cada palavra errada que um aluno escreve vai direitinha para o hospital para ser convenientemente tratada. Se se trata apenas de um til mal colocado, a palavra sai pouco tempo depois.

Mas se se trata de erros mais pesados (a troca do b pelo v, e vice-versa, por exemplo) ficam lá mais tempo, indo às vezes, nos casos mais agudos, parar aos Cuidados Intensivos.

Claro que o ideal é que não seja necessário mandar muitas palavras para lá – até porque os alunos são penalizados por cada palavra doente. E têm de fazer tudo, absolutamente tudo, para que ele saia de lá completamente curada, e o mais depressa possível.

Os alunos ganham pontos no final de cada trimestre, consoante tiveram poucas palavras no hospital, ou – e seria o ideal – nenhuma. Isso conta depois para a avaliação do aluno no fim do ano.

(É claro que a atribuição de pontos aos alunos que não tiveram nenhuma palavra errada teve de ser estabelecida porque os alunos, a princípio, para se divertirem mais, enganavam-se de propósito para verem as suas palavras enviadas para o hospital…)

Neste momento sabe-se que estão 15 palavras internadas no hospital – entre elas “recibir”, “verde”, “rabo”, “Rodríguez” e “difícil”.

Mas já foi anunciado que, por sorte, têm apenas ferimentos ligeiros.

 

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