Opinião
17 fevereiro 2023

Sair do "Retrocedismo"

Tempo de leitura: 7 min
Acredito que a transformação da Igreja está a acontecer por estarmos a tornarmo-nos numa comunidade dinâmica de peregrinos. Quem sabe se nesta peregrinação pelo mundo contemporâneo, um pequeno, mas importante passo, não seja começar por sair do “retrocedismo”.
Miguel Oliveira Panão
Professor universitário
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Desde há algum tempo que existem ondas progressistas e conservadoras quanto à vida da Igreja e a sua relação com o mundo. Uma vez, ouvi que éramos conservadores porque temos um tesouro e queremos conservá-lo. Mas será que a tradição é uma “coisa” estática? O caminho que estamos a fazer no âmbito da sinodalidade não pode levar-nos a andar para trás, negando o que vivemos no presente. O Papa Francisco até inventou uma palavra para quem acha que o melhor seria voltar para trás: um retrocedismo”.

A 1 de Junho de 2022, o Papa Francisco disse no discurso que fez aos participantes do Congresso dedicado às “Linhas de Desenvolvimento do Pacto Educativo Global” que «há a moda – em todos os séculos, mas neste século vejo-a como um perigo na vida da Igreja – que em vez de beber das raízes para ir em frente – aquele sentido das bonitas tradições – há um “retrocedismo”, não “para baixo e para cima”, mas para trás. Este “retrocedismoque nos faz seita, que nos fecha, que nos tira os horizontes: denomina-se guardiães de tradições, mas de tradições mortas.»

Tomáš Halík, na introdução que fez em Praga na Assembleia Sinodal Continental Europeia, diz que «Se a Igreja pretende contribuir para a transformação do mundo, deve estar permanentemente em transformação.» E essa transformação do mundo faz-se através da Evangelização, que é a sua principal missão. Uma Evangelização que produza fruto por inculturação. Halík nota como o mundo, hoje, está mais conectado do que nunca, e ao mesmo tempo, está mais polarizado do que nunca.

Segundo um grupo de investigadores liderado por Shanto Iyengar, que publicou uma síntese para a Annual Review of Political Science, existe um tipo de polarização nos Estados Unidos que é muito emocional, a polarização afectiva. Significa que produz comportamentos polarizados entre as pessoas, muito para além do lado político em que se encontram. Isto é, tanto esquerda como direita podem ter a mesma ideia política, mas isso não diminui a polarização afectiva entre as partes. Soube de um episódio, há algum tempo, de uma diocese que organizou uma acção de formação sobre a procriação medicamente assistida, para informar as pessoas e reflectir seriamente sobre o assunto. Porém, um grupo de católicos interpretou que falar sobre o assunto seria concordar e promover a PMA, quando o propósito não era concordar ou discordar, mas reflectir e formar. A acção acabou por não se realizar porque se previa uma manifestação sem sentido. Aquele grupo de católicos havia cedido ao “retrocedismo”. Precisamos de sair do “retrocedismo”.

Meses depois, no dia 1 de Setembro, o Papa Francisco volta a falar do assunto aos membros da Associação Italiana de Professores e Cultores de Liturgia: «Há um espírito que não é o da verdadeira tradição: o espírito mundano do “retrocedismo”, hoje na moda: pensar que ir às raízes significa retroceder. Não, são coisas diferentes. Se fores às raízes, as raízes levam-te para cima, sempre. Como a árvore, que cresce a partir do que lhe chega das raízes. E a tradição consiste precisamente em ir às raízes, porque é a garantia do futuro, como dizia Mahler. Ao contrário, o “retrocedismo” é recuar dois passos porque é melhor e “sempre se fez assim”. É uma tentação na vida da Igreja que te leva a um restauracionismo mundano, disfarçado de liturgia e teologia, mas é mundano. E o “retrocedismo” é sempre mundanidade: por isso, o autor da Carta aos Hebreus diz: “Não somos pessoas que andam para trás”. Não, vais em frente, de acordo com a linha que a tradição te dá. Voltar para trás é ir contra a verdade e também contra o Espírito. Fazei bem esta distinção.»

Quando os mais “retrocedistas” ouvem o Papa Francisco falar deste modo, poderão pensar que ele é “progressista” e que a Igreja está a ficar uma confusão de ideias e a perder alguma da sua identidade relativamente a valores relacionados com situações de clivagem social como o aborto, a homossexualidade ou a eutanásia. Parece-lhes que diante daquele que sofre, o papa quebra os ideais de há séculos, para minar a tradição com tendências culturais hodiernas, onde tudo é relativo, permitido, desde que amemos, levando a uma ruptura com valores fundamentais. O que queria então dizer Santo Agostinho com "ama e faz o que quiseres"? Por outro lado, se uma pessoa vestir uma roupa diferente, passa a ser uma outra pessoa? Pensar numa polarização afectiva entre conservadores e progressistas é continuar a mentira que esta divisão reflecte.

A revolução da sinodalidade consiste na ruptura que está a fazer com os grilhões das polarizações afectivas que temos nos pés e que nos impedem de avançar no caminho da modernização da espiritualidade, não pela alteração da Tradição, mas pelo seu aprofundamento. Qualquer aprofundamento do conteúdo exige uma reforma na forma. Teilhard de Chardin acreditava haver uma só força que unia sem destruir: o amor. Assim como Halík, também eu acredito que a transformação da Igreja está a acontecer por estarmos a tornarmo-nos numa comunidade dinâmica de peregrinos. Quem sabe se nesta peregrinação pelo mundo contemporâneo, um pequeno, mas importante passo, não seja começar por sair do “retrocedismo”.

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